Outros países têm cargas tributárias bem maiores que a brasileira. Então, por que temos a impressão de que somos os mais prejudicados pela tributação?
Muitos brasileiros acreditam sofrer a maior carga tributária do mundo. Mas será que isso é verdade? Países como a Suécia, em que o Imposto sobre a Renda (IR) da pessoa física pode chegar a até 58% do salário, em comparação aos atuais 27,5% brasileiros, demonstram que esse pensamento é deveras equivocado. Nesse sentido, países europeus como Finlândia, Noruega, Dinamarca, Holanda, Bélgica e Áustria se assemelham à Suécia, com alíquotas de Imposto de Renda que superam os 50% da renda pessoal. Até o vizinho Chile busca, a cada ano, se equiparar aos países nórdicos. A tributação sobre a renda está em 45%, e o governo chileno afirma ter planos de majorá-la.
Por que, então, os contribuintes brasileiros sentem que a mordida sangra mais aqui?
Diversos são os fatores que podem explicar esse sentimento de injustiça. O primeiro, e talvez mais relevante, é o fato de que o retorno em benefícios à população não é observado em proporção ao que se arrecada. Um estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) mostra que, dentre 30 países pesquisados, o Brasil é que oferece o pior retorno em benefícios à população comparado aos valores arrecadados por meio dos impostos.
Até nossos hermanos argentinos, que há anos suportam uma crise política e econômica, obtiveram resultado significativamente superior ao brasileiro no que se refere aos dados do Produto Interno Bruto (PIB) e ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, mesmo com alíquota máxima para o IR ultrapassando os 35%. Outro motivo que inflama os nervos é a exorbitante parcela de impostos que recaem sobre o consumo. Cerca de 60% da arrecadação de impostos do Brasil decorre da tributação sobre bens de consumo – resultando no pagamento igualitário entre ricos e pobres. Como o brasileiro mais pobre gasta a maior parte de sua renda em produtos básicos, acaba por sofrer mais impostos. Considerando apenas essa tributação indireta, a carga dos mais pobres beira os 30%, ao passo que a dos mais ricos não ultrapassa os 11%.
De acordo com o IBPT, o Brasil não tem uma política tributária que taxe o cidadão de acordo com sua capacidade de contribuir – conforme prevê a Constituição –, mas sim uma política de arrecadação para fazer caixa, resultado da ineficiência do Estado em administrar seus recursos. Isso se reflete na elevada taxação sobre o consumo, e relativamente baixa sobre a renda. Observa-se, ainda, pelos dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que os impostos sobre o consumo no Japão não ultrapassam os 18% da arrecadação total; nos Estados Unidos, beiram os 17%. Até o Reino Unido, cuja característica é tributar fortemente o consumo em comparação com seus vizinhos, tem a porcentagem de seus impostos sobre consumo em uma proporção inferior a 35%.
O retorno em benefícios à população não é observado em proporção ao que se arrecada
Nenhum país rico tem uma taxação tão elevada de impostos sobre o consumo. Sustentam os cientistas sociais que há uma relação direta entre a alta taxação sobre o consumo – que, como mencionado, recai sobre todos os cidadãos – e a desigualdade social, além de influenciar diretamente na cadeia produtiva pela evidente redução do consumo.
Em terceiro lugar, a progressividade das alíquotas, ainda que prevista expressamente como princípio constitucional, não é observada em sua íntegra nas alíquotas do Imposto de Renda. De acordo com esse princípio, as alíquotas deveriam atender a capacidade contributiva do contribuinte, de maneira proporcional. Aplica-se uma alíquota maior a quem aufere maior renda, e igualmente uma menor a quem aufere menos renda. Mas não é o que se nota. Aos trabalhadores que recebem mais de R$ 4.664,68 de salário, a alíquota aplicada já é a máxima, de 27,5%. E apenas trabalhadores que recebam abaixo de R$ 1.903,98 são isentos do recolhimento do imposto. Ou seja, toda a progressividade se dá em uma pequena variação de salário, de cerca de R$ 2,7 mil, gerando a crítica situação em que a classe baixa suporta uma carga tributária proporcionalmente mais pesada que as classes mais altas.
A esse respeito, a situação se torna ainda mais agravada se considerarmos somente a defasagem temporal das alíquotas, sem nem sequer adentrar em sua proporcionalidade. De 1996 a 2016, pelo IPCA, a defasagem acumulada na tabela de cálculo do Imposto de Renda é de 83,1%. Se o período considerado for de janeiro de 2003 a dezembro de 2016, a defasagem é de 31,24%.Os trabalhadores isentos da tributação da renda, se atualizadas as alíquotas pela inflação, deveriam ser os que recebem até R$ 3.460,50 e não os atuais R$ 1.903,98, de acordo com estudo divulgado pelo Dieese, em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco). Além disso, a falta de correção do reajuste da tabela também reduz o valor das deduções do IR, o que causa ainda mais perdas ao trabalhador.
Em tempo de reforma tributária e busca de uma justiça fiscal que não comprometa a arrecadação, qual seria, então, a melhor solução para o Imposto de Renda?
A primeira ação a ser tomada, em um projeto de modernização tributária, seria o aumento da taxa de isenção, de sorte a buscar minimizar a desigualdade social. Posteriormente, o espaço entre as faixas de renda deveria ser alargado, para refletir a real situação econômica do trabalhador. A alíquota máxima de 27,5% só deveria ser aplicada aos contribuintes que auferirem renda superior a R$ 10 mil, a exemplo de diversos países desenvolvidos.
A possibilidade de dedução deveria se tornar regra, sem qualquer limitação de valores a serem deduzidos, por se tratar de serviços fundamentais. Da mesma maneira que uma empresa em Lucro Real deduz todos os seus custos, o trabalhador deveria ter o direito de deduzir quaisquer gastos particulares relacionados a saúde, educação, dependentes, Previdência ou pensão judicial, notadamente quando tais custos decorrem da ineficiência do Estado em adimplir com sua obrigação quanto a saúde, educação e segurança.
Nenhum país rico tem uma taxação tão elevada de impostos sobre o consumo
E a criação de uma alíquota mais elevada? Diversos foram os rumores acerca da criação de novos tributos, aumento de alíquotas e uma possível reação agressiva da Receita Federal ante o rombo no orçamento das contas do governo. Entre elas, o frisson ficou por conta de uma possível criação de nova alíquota do IR, que chegasse a até 35%. Do ponto de vista de justiça fiscal, é possível que isso até soasse como música aos ouvidos da população mais pobre. Isso porque a estimativa é de que essa parcela mais rica – em torno de 71 mil contribuintes (0,05% da população brasileira) que ganham, em média, R$ 4,1 milhão por ano – pague cerca de 6,7% em tributos.
No entanto, economicamente falando, isso não resolveria o problema do rombo financeiro existente nos cofres públicos. Estima-se que a eventual criação de alíquota de 35% incidente sobre contribuintes que auferissem mais de R$ 20 mil por mês pudesse gerar cerca de R$ 4 bilhões ao fisco. Parece muito, mas, em comparação com o déficit federal, não dá nem para molhar o bico.
Então, que outra solução seria justa, do ponto de vista social, e ao mesmo tempo efetiva, do ponto de vista econômico? Aí se caminha no delicado e tortuoso tema da tributação de lucros e dividendos, considerado o Santo Graal dos empresários brasileiros. Em argumentos estritamente matemáticos, tal tributação poderia render até R$ 60 bilhões ao governo.
Dados publicados pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG), vinculado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), revelam que o Brasil é um país de extrema desigualdade e também um paraíso tributário para os super-ricos. Isso porque combina baixo nível de tributação sobre aplicações financeiras, uma das mais elevadas taxas de juros do mundo e uma prática pouco comum de isentar a distribuição de dividendos de IR na pessoa física com a elevada tributação sobre o consumo e taxação da renda em faixas baixas de salário. Entre os 34 países da OCDE, apenas o Brasil e a Estônia isentam os dividendos de tributação. A Estônia, após o domínio soviético, adotou uma das reformas pró-mercado mais radicais do mundo, estando na contramão de todos os países europeus e nórdicos. Resta, então, o Brasil, que segue dando isenção tributária à principal fonte de renda dos mais ricos. Até quando? Ninguém sabe.
No entanto, o princípio da anterioridade tributária prevalece (a lei só passa a produzir efeitos após 90 dias de sua promulgação, e apenas para o exercício do ano seguinte). Se até 30 de setembro não houver nenhuma aprovação de medida pelas casas legislativas e que seja sancionada pela Presidência da República, os grandes contribuintes poderão voltar a dormir tranquilos, ao menos no quesito Imposto de Renda.
A justiça social tem seu primeiro passo numa reestruturação das cargas fiscais. Para isso, aumentar a faixa de isenção do tributo é o primeiro fôlego em direção a uma igualdade fiscal. Corrigir a tabela atual pela inflação também se mostra de extrema urgência. O espaçamento entre as faixas de rendimento, bem como a criação de uma nova estrutura de tributação que contemple novas faixas, é seguir os acertos dos países desenvolvidos, que buscam diminuir a desigualdade entre seus contribuintes. A possibilidade de abatimento integral dos custos relativos a serviços básicos pode trazer uma sensação de retorno do contribuinte que acalmará os ânimos, e justificará as altas cargas suportadas pelos brasileiros. E, por fim, a eventual tributação da renda oriunda de dividendos, quando acima de um montante mínimo, poderá ser o principal passo para uma reforma tributária mais justa e, em consequência, para a transformação do IDH brasileiro.
A mordida dói mais no Brasil. E é possível que nos doa sempre. Mas há como evitar seu sangramento, e até fazer o leão ronronar e lamber para sarar.